1. Com quanta reverência cumpre receber a Cristo
- VOZ DO DISCÍPULO: São vossas essas palavras, ó Jesus, verdade
eterna, ainda que não fossem proferidas todas ao mesmo tempo, nem
escritas no mesmo lugar. Sendo vossas, pois, essas palavras e verdadeiras,
devo recebê-las todas com gratidão e fé. São vossas, porque vós as
dissestes; e são também minhas, porque as dissestes para minha salvação.
Cheio de alegria as recebo de vossa boca, para que mais profundamente
se me gravem no coração. Animam-se palavras de tanta ternura, atemorizam-me
os meus pecados, e minha consciência impura me afasta da participação
de tão altos mistérios. Atraime a doçura de vossas palavras, mas me
oprime a multidão de meus pecados.
- Mandais que me chegue a vós com grande confiança, se quero ter parte
convosco; e que receba o manjar da imortalidade, se desejo alcançar
a vida e glória eterna. Vinde, dizeis vós, vinde a mim todos que penais
e estais sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Ó palavra doce e amorosa
aos ouvidos do pecador: vós, Senhor meu Deus, convidais o pobre e
indigente à comunhão de vosso santíssimo corpo, mas quem sou eu, Senhor,
para ousar aproximarme de vós? Eis que os céus dos céus não vos pode
abranger, e dizeis: Vinde a mim todos!
- Que quer dizer essa condescendência tão meiga e esse tão amoroso convite?
Como me atreverei a chegar-me a vós, quando não conheço em mim bem
algum em que me possa confiar? Como posso acolher-vos em minha morada,
eu, que tantas vezes ofendi a vossa benigníssima face? Tremem os anjos
e os arcanjos, estremecem os santos e os justos, e vós dizeis: Vinde
a mim todos! Se não fosse vossa essa palavra, quem a teria por verdadeira?
Se vós o não ordenásseis, quem ousaria aproximar-se?
- Noé, o varão justo, trabalhou cem anos na construção da arca para
salvar-se com poucos: como me poderei eu preparar numa hora para receber
com reverência o Criador do mundo? Moisés, vosso grande servo e particular
amigo, fabricou a arca de madeira incorruptível, e revestiu-a de ouro
puríssimo, para guardar nela as tábuas da lei; e eu, criatura vil,
me atreverei a receber-vos com tanta facilidade, a vós, que sois o
autor da lei e o dispensador da vida? Salomão, o mais sábio dos reis
de Israel, levou sete anos a edificar o templo magnífico, em louvor
de vosso nome, e celebrou por oito dias a festa de sua dedicação,
ofereceu mil hóstias pacíficas, e ao som das trombetas e com muito
júbilo colocou a arca da aliança no lugar que lhe havia sido preparado.
E eu, o mais miserável de todos os homens, como poderei receber-vos
em minha casa, quando mal sei empregar meia hora com devoção? e oxalá
que uma vez sequer a houvesse empregado dignamente!
- Ó meu Deus, quanto se esforçaram esses vossos servos para agradar-vos!
Ai, quão pouco é o que eu faço! Quão pouco o tempo que gasto em preparar-me
para a comunhão! Raras vezes estou de todo recolhido, raríssimo livre
de toda distração. E, todavia, na presença salutar de vossa divindade
não me devia ocorrer pensamento algum impróprio, nem eu me devia ocupar
de criatura alguma, pois vou hospedar, não a um anjo, senão ao Senhor
dos anjos.
- Demais, há grandíssima diferença entre a arca da aliança com suas
relíquias e vosso puríssimo corpo com suas inefáveis virtudes; entre
aqueles sacrifícios da lei, que eram apenas figuras do futuro, e o
sacrifício verdadeiro de vosso corpo, que é o cumprimento de todos
os sacrifícios antigos.
- Por que, pois, se me não acende melhor o meu coração na vossa adorável
presença? Por que me não preparo com maior cuidado para receber vosso
santos mistério, quando aqueles santos patriarcas e profetas, reis
e príncipes, com todo o povo, mostraram tanta devoção e fervor no
culto divino?
- Com religioso transporte dançou o piedosíssimo rei Davi diante da
arca da aliança, em memória dos benefícios concedidos outrora a seus
pais; mandou fabricar vários instrumentos musicais, compôs salmos
e ordenou que se cantassem com alegria, e ele mesmo os cantava muitas
vezes ao som da harpa; ensinou ao povo de Israel a louvar a Deus de
todo o coração e angrandecê-lo e bendizê-lo todos os dias, a uma voz.
Se tanta era, então, a devoção e o fervor divino diante da arca do
testamento, quanta reverência e devoção devo eu ter agora, e todo
o povo cristão, na presença do Sacramento e na recepção do preciosíssimo
corpo de Cristo!
- Correm muitos a diversos lugares para visitar as relíquias dos santos,
e se admiram ouvindo narrar os seus feitos; contemplam os vastos edifícios
dos templos e beijam os sagrados ossos, guardados em seda e ouro.
E eis que aqui estais presente diante de mim, no altar, vós, meu Deus,
Santo dos santos. Criador dos homens e Senhor dos anjos. Em tais visitas,
muitas vezes é a curiosidade e a novidade das coisas que move os homens;
e diminuto é o fruto de emenda que recolhem, principalmente quando
fazem essas peregrinações com leviandade, sem verdadeira contrição.
Aqui, porém, no Sacramento do Altar, vós estais todo presente, Deus
e homem, Cristo Jesus; aqui o homem recebe copioso fruto de eterna
salvação, todas as vezes que vos recebe digna e devotamente. Aí não
nos leva nenhuma leviandade, nem curiosidade ou atrativo dos sentidos,
mas sim a fé firme, a esperança devota e a caridade sincera.
- Ó Deus invisível, Criador do mundo, quão maravilhosamente nos favoreceis,
quão suaves e ternamente tratais com vossos escolhidos, oferecendo-vos
a vós mesmo como alimento, neste Sacramento! Isto transcende todo
entendimento, isto atrai os corações dos devotos e acende o seu amor.
Porque esses teus verdadeiros fiéis, que empregam toda a sua vida
na própria emenda, recebem muitas vezes deste augusto Sacramento copiosa
graça de devolução e amor à virtude.
- Ó graça admirável e oculta deste Sacramento, que só dos fiéis de Cristo
é conhecida, mas que os infiéis e escravos do pecado não podem experimentar!
Neste Sacramento se dá a graça espiritual, recupera a alma a força
perdida, refloresce a formosura deturpada pelo pecado. Tamanha é,
às vezes, esta graça, que, pela abundância da devoção recebida, não
só a alma, mas ainda o corpo fraco sente-se munido de maiores forças.
- É, porém, muito para chorar e lastimar a nossa tibieza e negligência,
o pouco fervor em receber a Jesus Cristo, em quem reside toda a esperança
e merecimento dos que se hão de salvar. Porque ele é a nossa santificação
e redenção, ele o consolo dos peregrinos e o gozo eterno dos santos.
E assim é muito pra chorar o pouco caso que tantos fazem deste salutar
mistério, sendo ele a alegria do céu e a conservação de todo o mundo.
Ó cegueira e dureza do coração humano, que tão pouco estima esse dom
inefável, antes, com o uso cotidiano que dele faz, chega a cair na
indiferença!
- Pois, se esse augusto Sacramento se celebrasse num só lugar e fosse
consagrado por um só sacerdote no mundo, com quanto desejo imaginas
que acudiriam os homens a visitar aquele lugar e aquele sacerdote
a fim de assistir à celebração dos divinos mistérios? Agora, porém,
há muitos sacerdotes, e em muitos lugares Cristo é oferecido, para
que tanto mais se manifeste a graça e o amor de Deus para com os homens,
quanto mais largamente é difundida pelo mundo a sagrada comunhão.
Graças vos sejam dadas, bom Jesus Pastor eterno, que vos dignais sustentar-nos
a nós, pobres e desterrados, com vosso precioso corpo e sangue, e
até convidar-nos, com palavras de vossa própria boca, à participação
desses mistérios, dizendo: Vinde a mim todos que penais e estais sobrecarregados,
e eu vos aliviarei.
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