58. Que não devemos escrutar as coisas mais altas e os ocultos juízos de Deus
- JESUS: Filho, guarda-te de disputar sobre assuntos altos
e os ocultos juízos de Deus; não queiras investigar por que este é
deixado em tal estado, aquele elevado a tanta graça, este tão oprimido,
aquele tão exaltado. Isso excede o alcance humano, e não há raciocínio
nem discussão que possam escrutar os desígnios de Deus. Quando, pois,
o inimigo te sugere tais pensamentos, ou os curiosos questionarem
sobre eles, responde com o profeta: Justo sois, Senhor, e justo é
o vosso juízo (Sl 118,37), ou, também: Os juízos do Senhor são verdadeiros
e justificados em si mesmos (Sl 19, 10). Meus juízos devem se temer,
e não discutir, porque são incompreensíveis ao entendimento humano.
- Não queiras também inquirir ou disputar sobre os méritos dos santos,
qual seja o mais santo ou o maior no reino dos céus. Daí nascem muitas
controvérsias e contendas inúteis, que nutrem a soberba e a vanglória,
donde procedem invejas e discórdias, porque este prefere soberbamente
um santo, aquele quer dar a preeminência a outro. Querer saber e investigar
tais coisas não traz proveito algum, antes desagrada aos santos, porque
"eu não sou Deus de discórdia e sim da paz" (1Cor
14,33), e esta paz consiste antes na verdadeira humildade que na própria
exaltação.
- Alguns, por um zelo de predileção, se afeiçoam mais a este ou àquele
santo, mas este afeto é antes humano que divino. Sou eu que fiz todos
os santos; eu lhes dei a graça, eu lhes outorguei a glória. Eu sei
os merecimentos de cada um, eu os preveni com as bênçãos da minha
doçura (Sl 20,4). Eu conheci os meus amados antes dos séculos, eu
os escolhi do mundo, e não eles a mim. Eu os chamei por minha graça
e os atraí por minha misericórdia: eu os fiz passar por várias provações.
Eu os inundei de maravilhosas consolações, dei-lhes a perseverança
e coroei a sua paciência.
- Eu conheço o primeiro e o último e abraço a todos com inestimável
amor. Eu devo ser louvado em todos os meus santos, bendito sobre todas
as coisas e honrado em cada um deles, que eu tão gloriosamente exaltei
e predestinei, sem prévio merecimento algum de sua parte. Quem desprezar,
pois, um dos menores dos meus deixa também de honrar o maior, porque
fui eu que fiz o pequeno e o grande. E quem menospreza a todos os
mais que estão no reino dos céus. Porquanto todos são um belo veículo
da caridade; todos têm o mesmo parecer, o mesmo querer, e se amam
mutuamente com o mesmo amor.
- Além disso, - o que é mais sublime ainda - eles me amam mais a mim
que a si e seus merecimentos. Porque, arrebatados acima de si mesmos
e desprendidos de todo amor-próprio, se transformaram inteiramente
no meu amor, no qual descansam com sumo gozo. Nada há que os possa
desviar ou deprimir, porque, repletos da eterna verdade, ardem no
fogo inestinguível da caridade. Calem-se, pois, os homens carnais
e sensuais, e não discutam sobre o estado dos santos, porque não sabem
amar senão seus próprios gozos. Eles diminuem ou acrescentam conforme
a sua inclinação, e não como agrada à eterna Verdade.
- Em muitos é isso ignorância, mormente naqueles que, pouco iluminados,
raramente sabem amar um santo com amor puramente espiritual. Leva-os
ainda muito a natural afeição e a amizade humana, que os inclina a
este ou àquela, e, como se portam nas coisas terrenas, assim se lhes
afiguram também as celestiais. Há, porém, incomparável distância entre
o que pensam os imperfeitos e o que alcançam os homens espirituais
pela revelação superior.
- Guarda-te, pois, filho, de discorrer curiosamente sobre coisas que
excedem teu entendimento; cuida antes e trata de seres ainda o ínfimo
no reino de Deus. E dado que alguém soubesse quem seja deles o mais
santo ou o maior no reino dos céus, que lhe aproveitaria esse conhecimento,
se dele não tomasse motivo de humilhar-se diante de mim e louvar mais
fervorosamente o meu nome? Muito mais agrada a Deus quem cuida na
grandeza dos seus pecados, na escassez das virtudes e na grande distância
que o separa da perfeição dos santos, do que aquele que disputa sobre
a maior ou menor glória deles. Melhor é implorar os santos com devotas
orações e lágrimas, suplicar-lhes com humildade de coração sua gloriosa
intercessão, que perscrutar, com vã curiosidade, seus segredos.
- Os santos estão bem contentes e satisfeitos; oxalá também os homens
soubessem estar contentes e refrear suas vãs palavras. Não se gloriam
dos próprios merecimentos, pois nenhum bem atribuem a si mesmos, mas
tudo referem a mim que lhes dei tudo por infinita caridade. Tão cheios
estão do amor da divindade e de abundantíssima alegria, que nada falta
à sua glória, nem pode faltar à sua bem-aventurança. Quanto mais elevados
estão os santos na glória, tanto mais humildes são em si mesmos e
mais perto de mim e de mim amados. Por isso lês na Escritura que depunham
suas coroas diante de Deus e se prostavam diante do Cordeiro e adoravam
aquele que vive nos séculos dos séculos (Apc 4,10).
- Muitos perguntam qual seja o maior no reino de Deus e não sabem se
serão dignos de ser contados entre os menores. Grande coisa é ser
ainda o menor no céu, onde todos são grandes, porque serão chamados
filhos de Deus, e, na verdade, o são. O menor valerá por mil, e o
pecador de cem anos morrerá (Is 60,22; 65,20). Pois, quando os discípulos
perguntaram quem era o maior no reino dos céus, receberam esta resposta:
Se vos não converterdes e vos tornardes como crianças, não entrareis
no reino dos céus (Mt 18,3.4).
- Ai daqueles que recusam humilhar-se espontaneamente com os pequenos;
porque é baixa a porta do reino celeste e não lhes dará entrada. Ai
também dos ricos, que têm neste mundo suas consolações, porque, quando
os pobres entrarem no reino de Deus, eles ficarão de fora, chorando.
Regozijai-vos, humildes, e "exultai, pobres, porque vosso
é o reino de Deus" (Lc 6,20) contanto que andeis no caminho
da verdade.
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